sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Use a voz para liberar as emoções e aguçar a intuição

Cada um tem o timbre certo para se renovar, meditar e sintonizar o melhor. Aprenda a usar o seu instrumento. E ouça a trilha sonora - divina! - desta reportagem

Liliane Oraggio | Ilustração Paula Jardin

Para chegar mais perto de Deus, as rezadeiras nordestinas cantam o Bendito. Os sacerdotes católicos enchem as catedrais com o canto gregoriano. Os budistas da linhagem zen recitam versos em japonês. Os indianos entoam mantras. Os sufis repetem em bom som os 99 nomes de Deus. Os negros americanos arrasam na música gospel. Os xamãs africanos e indígenas, os tibetanos, os aborígenes australianos... Todos, seja qual for a religião, usam as cordas vocais para recriar a conexão com estados mais elevados de consciência. E assim afinam a sintonia com o que é primordial - para além do ego, do julgamento, da mágoa que tranca a garganta. “A voz é a forma mais natural de dominar a mente racional para chegar a um estado relaxado, onde a sensação de alegria e expansão é renovada”, define a psicóloga Sandra Sofiati, de São Paulo.

Sandra coordena o workshop "O Corpo Sonoro", com duração de sete semanas, em que grupos de iniciantes praticam vários exercícios que possibilitam descobrir a própria musicalidade. “Quando comecei o curso, tentava cantar e logo vinha a vontade de chorar. A voz saía no choro e percebi há quanto tempo eu não me permitia emitir um som que não fosse a fala. O processo ajudou a dissolver minha rigidez, a respirar melhor, a ficar mais serena e intuitiva”, conta Bettina Schmid, 43 anos, designer gráfica, de São Paulo. “Outra experiência incrível foi cantar músicas étnicas africanas, por exemplo, sem entender as letras. Isso tirava de cena o meu ‘cabeção’, a mania de entender e criticar tudo. Incorporei à rotina o hábito de cantarolar ou emitir outros sons enquanto faço movimentos e caretas - essa prática faz com que eu me sinta melhor e me deixa mais confiante em todas as situações”, diz.

Respirar, relaxar, escutar

Quem se propõe a emitir sons ritmados respira melhor. Em um estágio inicial, o hábito desbloqueia emoções que causam tensões no corpo, ativa a circulação do sangue e aumenta o pique. Enquanto isso, a mente se amplia, tornando-se menos suscetível a pensamentos fixos e idéias limitadoras. Em um nível mais profundo, conquistado com a prática, é possível usar a voz para que o corpo, a mente e o espírito permaneçam alinhados com as forças cósmicas. Quando praticantes de ioga entoam a sílaba OM, a intenção é uma só: afinar o som desse instrumento vital, o corpo, com o som primordial, que surgiu no momento da criação do Universo.

Os iniciados não têm dúvidas de que a espiritualidade e a voz são irmãs gêmeas: ambas impalpáveis, elas dependem da entrega ao momento presente. A voz manifesta a devoção e leva à transcendência. Cantando mantras, mesmo sem saber o significado da letra, ou canções bem simples, passando as escalas muito lentamente,

o corpo reaprende a respirar, a relaxar e também a escutar. É tudo de que precisamos para estar bem”, diz a carioca Alba Lírio, professora de ioga da voz, método desenvolvido pela Vox Mundi Escola do Som e da Voz , da Califórnia, e que tem mais de 100 núcleos espalhados pelo mundo, incluindo o Brasil.

A arquiteta paulistana Mariana Chemin, 32 anos, não gostava da sua voz. Iniciante na ioga, resolveu fazer esse trabalho com Alba para entoar melhor os mantras, frases melódicas em sânscrito. “Repeti-los organiza os chacras, os sete centros de vitalidade do corpo. Isso aumentou a minha conexão com o presente e a força de expressão. Sinto que ganhei voz no mundo, garra para ir em direção ao que quero. Além do mais, os mantras celebram os deuses e a alegria. Essa energia fica em mim e no meu dia-a-dia”, diz.

Na visão de Alba, nenhuma voz é feia, todas são singulares. “Um ponto em comum entre expressão vocal e espiritualidade é que não existem duas vozes iguais, cada ser humano é único em seu dom”, completa. Para quem quer começar a desenvolver esse talento, alguns minutos cantarolando no chuveiro já valem como iniciação desse gesto, que depende basicamente de músculos, de ar e da respiração intencional.

“Para cantar ou emitir sons ritmados, é preciso alterar a respiração: inspira-se profundamente e libera-se o som na expiração. Não fazemos isso enquanto falamos”, explica Saulo Cardoso, clínico-geral e homeopata, de São Paulo. “Durante o canto, além da vibração do som na caixa craniana, muitos músculos - e não apenas os do tórax ou da boca - entram em ação. O ar passa pela boca, laringe, faringe, pregas vocais, diafragma, pélvis, abdome, provocando uma reorganização corporal, estimulando a circulação sanguínea e revigorando todas as células. Sem contar a promoção do autoconhecimento, pois quem trabalha a própria voz estabelece um diálogo físico e emocional consigo mesmo”, diz o médico. Cantar também revigora o cérebro. “A emissão da voz com ritmo em modulações variadas estimula as áreas cerebrais que comandam a fala, a linguagem, a coordenação motora e favorece a associação entre elas”, completa.

O curioso é que no corpo sem vida estão todos os órgãos, mas a voz não está. Ela é dádiva dos vivos, ligada à respiração, ao sopro divino que nos anima desde o nascimento.

A outra face indissociável do som é o silêncio. Depois de uma prática ou de uma reza, é ele que vem, revelando seu poder de conexão. Silenciar nos permite perceber o efeito da vibração e das sílabas que saíram da garganta em forma de sussurro, suspiro, grito ou prece. Talvez seja por isso que a canção de Gilberto Gil nos lembre: “Se eu quiser falar com Deus tenho que calar a voz”. Mas, antes, é preciso que ela seja nutrida - num processo que envolve corpo e alma. “Ao nascer, o bebê grita, começa a respirar, e o cordão umbilical é cortado. A partir daí, o corpo-a-corpo com a mãe passa a ser mediado pela voz”, lembra Sandra Sofiati. “A mãe fala e canta para o bebê. A criança chora e faz barulhinhos, começando assim a expressar suas necessidades e emoções. Instaura-se a existência sonora do ser”, finaliza.

Ginga e revelação

Para alguns, o canto manifesta-se como uma revelação. Foi assim com a cantora brasileira Fortuna, 50 anos. Judia, ela participou de uma cerimônia na sinagoga luso-espanhola de Nova York, lendo um livrinho de salmos, e começou a ouvir melodias. “ ‘Toda a alma louvará a Deus’ foi a primeira a soar na minha mente. Eu tinha 38 anos e uma carreira de cantora popular, mas naquele instante entendi minha missão com a música sacra. Mudei todo o meu trabalho em função disso. Fiz uma extensa pesquisa sobre música judaica e o modo de entoar os salmos bíblicos. Gravei um CD com os monges do Mosteiro de São Bento, e o momento máximo foi cantar na cerimônia ecumênica para o Dalai-Lama na Catedral da Sé, em 2006. A música é uma sintonia fina capaz de harmonizar as pessoas. Esse é o propósito do meu canto”, diz.

Como ela, há muitos cantores profissionais que vêem no canto algo além das paradas de sucesso, embora possam freqüentá-las. É o caso do inglês Bobby McFerrin, 58 anos, que já ganhou dez prêmios Grammy por seu trabalho arrojadíssimo de pesquisa vocal e improvisos. McFerrin faz das costelas, dos pés, do próprio rosto, caixas de ressonância de sons potentes e melodiosos. A especialidade de Bobby é cantar para multidões e fazer as multidões cantarem, em cânones espontâneos, cheios de ginga. Quando pisa no palco, repete o mesmo gesto sagrado dos monges budistas: une as mãos em frente ao rosto e faz uma reverência. Não é só uma gracinha de artista. No show que fez este ano em São Paulo, para o Teatro Municipal lotado, alguém da platéia perguntou se o autor da famosa canção DON’T WORRY BE HAPPY acreditava em Deus. “Sim, e considero a voz um presente divino”, respondeu Bobby, que tem como inspiradores Mozart, Gandhi e Jesus Cristo.

PARA ALINHAR CORPO E MENTE
A musicoterapeuta Alba Lírio indica um exercício simples. Com os lábios unidos, emita um som e leve o pensamento e a voz até a base da coluna. Continue emitindo o mesmo som e perceba as variações dele. Se sentir necessidade de respirar, faça-o de boca fechada... e continue vibrando. Devagar, vá elevando a voz: deixe que ela suba, percorrendo toda a coluna até o topo da cabeça e, se conseguir, vá além dela. Faça esse percurso da subida e descida do som algumas vezes, sem esforço. A seguir, com a boca entreaberta, projete para fora o som do A, imagine que ele tem um “H” no final. Esse fonema invoca a clareza e abre a porta da sensibilidade. Faça uma pausa e perceba a vibração em silêncio. Repita todos os dias por alguns minutos para alinhar corpo, mente e espírito. Você se sentirá mais presente e concentrada.

PARA REVIGORAR O ÂNIMO
A psicóloga Sandra Sofiati sugere um exercício parecido com as danças dos índios brasileiros, que ajuda a lidar com o lado prático do cotidiano. Concentre-se no seu propósito e bata os pés no chão, alternadamente, com força. Junto com os movimentos, emita sons de “O” ou “U” com a maior intensidade que conseguir, durante uns três minutos. Depois, faça silêncio total e sinta o efeito fortalecedor.

PARA DESBLOQUEAR O CORAÇÃO
Mentalize a intenção de criar uma troca divina. Comece a fazer gestos de dar e receber movimentando livremente os braços e as mãos para cima, para baixo, girando, abrindo e fechando. Simultaneamente, procure liberar a voz, emitindo o som de A” enquanto se movimenta. Pare tudo, silencie e sinta a vibração. Pratique, no máximo por cinco minutos, sempre que sentir necessidade.

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